O que é cineclubeEm Brasília, durante a Jornada realizada em 2003, alguém me disse que tinha reservas quanto ao nome cineclube. Por causa desse "clube", que parece uma coisa fechada, elitista. A mesma dúvida tinha me ocorrido, alguns anos antes. Antes de entender que quando os cineclubes surgiram, a palavra clube designava exatamente o espírito associativo e tinha justamente uma conotação democrática, participativa, como os clubes operários ou de imigrantes do começo do século passado. Depois disso, 80 e tantos anos de atuação consagraram o termo cineclube, que designa em todo o mundo a nossa atividade. Mas isso não impede que outros interesses, de variada origem e intenção, tentem conferir outros sentidos a esta – e outras palavras – com claras implicações ideológicas. À guisa de curiosidade: nos anos 90 eu descobri que as empresas Globo haviam requisitado o registro de marca da palavra cineclube. É preciso compreender o que é um cineclube – até porque a confusão gerada em torno do conceito favorece justamente uma visão em que os cineclubes não têm um papel muito claro. Sua importância se dilui quando não se conhecem seus objetivos, suas realizações, como sua estrutura específica se estabelece e opera dentro das comunidades e do processo cultural. Quando a imprensa e outros divulgadores de valores confundem o Serviço Social do Comércio, um circuito de salas de arte ou mesmo uma cinemateca com os cineclubes, estão, de fato, ocultando uma série de conteúdos exclusivos dos cineclubes, escondendo uma visão ideológica que não quer reconhecer certos potenciais "subversivos" do cineclubismo. Confundem os conceitos. O mesmo acontece quando chamam as (verdadeiras) rádios comunitárias de rádios piratas. Assim, de uma maneira geral, cineclube é entendido pelo senso comum como uma atividade meio de lazer cultural, fomentada talvez por algum tipo de nerd juvenil amante do cinema. Ou é um sinônimo de sofisticação do consumidor, uma espécie de grife que adorna desde sessões especiais na televisão até salas "diferenciadas" que exibem os filmes com expectativa de público menor. Misturando um pouco de cada, também chamam de cineclube às beneméritas iniciativas de organizações culturais, educacionais, patronais e paternais voltadas ao aprimoramento da cultura de variadas comunidades – que, aliás, nem sempre atingem seu público-alvo. É claro que todas essas atividades têm seu lugar, sua necessidade, seu público dentro da sociedade. Nada contra. Mas cineclube é outra coisa. Os cineclubes têm uma história própria, que liga a evolução do seu trabalho às diferentes situações nacionais, culturais e políticas em que se desenvolveram. Há vários tipos de cineclubes, alguns predominam em determinados países, em certas conjunturas; em situações diferentes sua forma de organização e atuação também variam. Os cineclubes surgiram nitidamente em resposta a necessidades que o cinema comercial não atendia, num momento histórico preciso; assumiram diferentes práticas conforme o desenvolvimento das sociedades em que se instalaram; mas assumiram uma forma de organização institucional única que os distingue de qualquer outra. Para começar, e apenas para introduzir um conceito atualmente familiar, os cineclubes são ONGs. São ONGs que associam pessoas em torno da atuação com cinema, mas são mais definidos que apenas isso.
Três características, quando juntas, são exclusivas dos cineclubes, os distinguem de qualquer outra atividade com cinema e, ao mesmo tempo, abrangem uma ampla gama de formas e ações que os cineclubes desenvolveram nos mais diferentes contextos. Duas delas são muito simples e claras, só se encontram, juntas, num cineclube; e não existe cineclube onde essas características não estiverem presentes. A terceira, menos objetiva, varia bastante de entidade para entidade, conforme a orientação ideológica predominante, mas é o que imprime direção à base organizacional definida pelas outras duas "regras" e o que dá conteúdo e objetivo, atualidade e personalidade ao trabalho do cineclube.
Os "cinemas de arte" têm dono, e seu objetivo maior é o lucro. Museus, entidades educacionais, assistenciais e outras, contratam ou nomeiam responsáveis; podem ser iniciativas boas, justas, eficientes e necessárias mas, a rigor, não são democráticas. Vejam bem, nem toda instituição deve necessariamente ser democrática. Com freqüência, a especialização, a experiência, ou a existência de fins muito precisos, determinam a necessidade de dirigentes escolhidos por outros critérios, que não devem ser considerados anti-democráticos. Por outro lado, a prática da democracia como forma mesmo de organização, estabelece outra dinâmica estrutural, outra forma de atuação. A busca do lucro também, a competição no mercado, foi o que até hoje assegurou o nível de universalidade que o cinema – e outras formas de exibição – atingiram. O cinema comercial, a televisão e, por enquanto em menor medida, a internet, em que pesem seus aspectos negativos, constituem a cultura popular por excelência, e o canal mais amplo – portanto de certa forma mais democrático – de informação e participação do conjunto da população. Assim, o que releva aqui é determinar essa diferença, a particularidade do cineclube, não fazer um juízo ético. Num cineclube, os responsáveis pela sua orientação são necessariamente eleitos. A representatividade, a forma de se organizar essa democracia, como qualquer outra democracia representativa, não costuma ser perfeita: podemos encontrar cineclubes com uma "panelinha" dirigente, assim como os que eram geridos, trabalhosamente, por decisões de assembléias bem numerosas, com todo tipo de situação intermediária. Mas os dirigentes são trocados, periodicamente, segundo a avaliação de seu desempenho e da direção que imprimem à entidade. Creio que é isso que lhes dá uma grande mobilidade e adaptabilidade, historicamente e nos mais diversos ambientes sociais. Os cineclubes têm uma característica orgânica que lhes permite superar a estagnação. Não ter fins lucrativos é outro elemento fundamental. É claro que a busca do lucro restringe o alcance de qualquer atividade, quando não lhe sacrifica, em maior ou menor grau, a qualidade. Basicamente os empreendimentos comerciais orientam sua ação pela realização do lucro, eliminando qualquer aspecto que dificulte, postergue ou mesmo reduza este objetivo. A tendência predominante na atividade comercial é a repetição, das experiências consagradas, lucrativas e a manutenção do status quo. Além disso, apropriação do lucro por uma pessoa ou grupo de pessoas é a base mais fundamental da nossa sociedade de classes. No cineclube, ainda que ele produza superavits financeiros com as suas atividades, esses resultados têm (até por lei) que ser reinvestidos na própria atividade: são, portanto, apropriados por todos. Nesse sentido, o cineclube não é uma instituição capitalista. O que nos leva à terceira "lei": organizado com base na mobilização de seus associados em função de um objetivo não financeiro, os cineclubes se voltam para fins culturais, éticos, políticos, estéticos, religiosos. Quase sempre realizam, de alguma forma, mesmo parcialmente, seus objetivos. Ou seja, os cineclubes produzem fatos novos, interferem em suas comunidades, contribuem para mudar consciências e formar opiniões, mobilizam. Não raro, são as sementes que chegam à floração de cineastas e outros artistas; crescem como instituições, transformando-se em museus, cinematecas, centros de produção; criam o caldo de cultura para mudanças culturais, comportamentais, para a geração de movimentos sociais. Os cineclubes produzem e modificam a cultura. Estas três características também estão consagradas na legislação da maioria dos países. No Brasil, desde o final dos anos 60, com a Lei 5536 (de 21/11/68) e, mais tarde, com as conquistas obtidas pelo movimento cineclubista organizado, com a Resolução nº 30 do Concine (1980), os cineclubes tinham de ser "associações culturais sem fins lucrativos", que aplicassem seus recursos exclusivamente em suas atividades culturais cinematográficas (também definidas na legislação). Um parágrafo, em especial, define com muita clareza o que é não ter fins lucrativos: os cineclubes "não podem remunerar sócios, dirigentes ou mantenedores". Ou seja, as entidades podiam gerar e gerir recursos de várias naturezas, desde que os aplicassem exclusivamente nos seus próprios objetivos. Todos, entretanto, que dispusessem de poder dentro da instituição – sócios, dirigentes e mantenedores – não poderiam usufruir desses recursos. Infelizmente não é raro que o cineclubista estreante desconfie de estatutos e regulamentos que rejam a atividade dos cineclubes, vendo nisso um constrangimento, uma limitação, em vez de perceber que são exatamente essas regras que asseguram o controle democrático da entidade e que, na verdade, garantem e consolidam a possibilidade do cineclube ser criativo. Há mais um aspecto fundamental dessas três leis. As duas primeiras identificam todos os cineclubes entre si, excluindo outras formas de organização. Elas são a base fundamental para a estruturação de um movimento, com identidade de organização e interesses iguais: historicamente as entidades representativas de cineclubes incorporam – e freqüentemente aprofundam – essas mesmas características fundamentais. No Brasil, por exemplo, o Conselho Nacional de Cineclubes tinha eleições "indiretas" – isto é, votavam as federações – até 1974, passando depois à forma de representação mais direta, onde todos os cineclubes democrática e legalmente constituídos votavam. A Dinafilme, distribuidora de filmes do movimento cineclubista, foi criada como órgão do CNC e era gerida por uma administração eleita diretamente nas jornadas de cineclubes e um conselho administrativo com representantes de cada Estado ou federação. Se as duas primeiras características aproximam e identificam os cineclubes, é justamente a terceira que os distingue, que permite que suas formas de atuação possam ser tão diferentes umas das outras, ricas, vivas, criativas. E que os cineclubes tenham tanto em comum, desde o cinema mudo até as formas mais modernas de diálogo do público com a imagem, que estaremos sempre criando. Com projetores a carvão ou imagens digitais, em telas de lençol ou de plasma. Felipe Macedo |
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