Proposta para o anteprojeto da Ancinav

Proposta dos cineclubes brasileiros para aperfeiçoamento do anteprojeto de lei dispondo sobre a organização das atividades cinematográficas e audiovisuais no País, sobre o Conselho Superior do Cinema e do Audiovisual, a Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual e outras providências.

Introdução

Os cineclubes constituem um dos segmentos mais permanentes atuando dentro do universo do cinema e do audiovisual brasileiro. Com manifestações precoces desde 1916, e atuando com forma institucional – o Chaplin Club – desde 1928, no Brasil, o cineclubismo é um movimento cultural que se encontra na base do processo cinematográfico. Dos cineclubes origina-se grande parte das instituições do cinema: as primeiras publicações, as cinematecas, os festivais. Nos cineclubes formou-se a quase totalidade dos maiores profissionais e artistas do cinema brasileiro, em todos os campos e especialidades. Mais que isso, instituição cultural fundamental, os cineclubes sempre foram escola de cidadania, lutando contra o obscurantismo, a ignorância e a censura e formando também grande parte das lideranças políticas e civis desta nação.

Atuando sem finalidades lucrativas, os cineclubes surgem espontaneamente em todos os ambientes culturais, em todos os meios sociais, e representam a forma mais flexível, diversificada, popular e democrática de permanente renovação do audiovisual no Brasil. Hoje os cineclubes operam nas fronteiras do audiovisual, experimentando e criando novas formas de comunicação, de arte, de linguagem. Sempre foram e continuam sendo essenciais na trajetória de reinvenção da imagem em movimento.

Apesar dessa indiscutível e fundamental importância, os cineclubes estão ausentes – ou apenas podem ser vistos com dificuldade, através de um laborioso exercício de interpretação – dessa proposta de regulamentação que ficou conhecida como "Lei da Ancinav". Eles constituem, no entanto, uma forma institucional particular e precisa, que deve ser reconhecida e regulamentada com urgência, em um momento de profunda e rápida transformação de tecnologias e mercados que ameaça distanciar ainda mais o marco legal e a atividade cineclubista. Pari passu com a proposição da nova lei, os cineclubes estão às vésperas de importante congresso – em novembro próximo – , resultado de uma grande retomada em todo o País e que deve culminar na reestruturação da sua entidade nacional, o Conselho Nacional de Cineclubes, fundado em 1962.

As sugestões a seguir procuram basicamente garantir e preservar a justa participação dos cineclubes na organização, regulamentação e gestão das atividades cinematográficas e audiovisuais, em particular as de caráter cultural; recuperar a conceituação de atividade cultural sem fins lucrativos, essencial na distinção da forma e do conteúdo da atividade cineclubista, e estender esse conceito às aplicações práticas de controles, incentivos e programas previstos na legislação.

Uma questão central: a definição de atividade cultural sem fins lucrativos

Os artigos do Livro III, Título I do anteprojeto de lei, ao tratar das definições das atividades cinematográficas e audiovisuais, relegam ao esquecimento e desuso uma importante conquista dos meios culturais brasileiros e, em particular, dos cineclubes.

De fato, o Artigo 37°, ainda que mencione brevemente, no inciso I do seu parágrafo primeiro, que a "exploração" de obras e conteúdos audiovisuais pode ser "não comercial", já não o faz no segundo inciso, como também não no caput do artigo. O termo "exploração", sem preciosismos da nossa parte, evoca principalmente a gestão de um negócio, a obtenção de proveitos.

No mesmo Título, o Artigo 39° já define empresa brasileira exclusivamente como empreendimento baseado em maioria de capital nacional, não admitindo, portanto, outra interpretação que a comercial, acionária.

É evidente que a oportuna proposta regulamentadora do Ministério da Cultura visa estabelecer regras e controles de interesse nacional e social sobre as inúmeras atividades comerciais da importantíssima indústria do audiovisual. Os cineclubes brasileiros manifestaram pública e inequivocamente seu apoio a essa iniciativa.

Mas aqui, concretamente, ao não precisar melhor os conceitos e a terminologia, a definição estabelece um precedente de confusão que vai repetir-se ao longo do texto legal, com implicações importantes e até mesmo algumas injustiças, na interpretação de outros artigos, como veremos adiante.

Assim, nossa sugestão, que visa dar mais clareza ao texto e preservar as características exclusivas de entidades sem finalidades lucrativas, que não devem ter suas atividades tolhidas por uma interpretação mais restritiva ou exclusivamente comercial, é a introdução de um artigo definindo claramente entidade – ou empresa – e atividade cultural cinematográfica ou audiovisual não lucrativa.

Essa definição foi, inclusive, uma conquista histórica dos meios culturais, consubstanciada na Lei 5.536 de 21 de novembro de 1968 (a "Lei da Censura"), lamentavelmente promulgada três semanas antes da edição do inconstitucional AI-5, que a soterrou sob um longo período de arbítrio. Já nos anos 70, porém, resistindo ao despotismo, o movimento de cineclubes conquistou algumas importantes vitórias contra o aparato de Censura usando a referida lei. Posteriormente esse princípio será aproveitado em Decretos e Resoluções, como também lembraremos nos momentos oportunos. O princípio da Lei 5.536 não deve ser confundido com o estabelecido na Lei 9.790, de 23/03/99 – a "Lei das Oscips" -, de alcance mais restrito, mas que não conflita com aquela.

Propomos, então, a introdução de um artigo – pela lógica, se seguiria ao Artigo 39° – com a seguinte redação:

Artigo 40° – Para os fins desta Lei, empresa ou entidade sem fins lucrativos é aquela que aplica seus recursos exclusivamente na manutenção e desenvolvimento de seus objetivos, sendo vedada a distribuição de lucros, bonificações ou quaisquer vantagens pecuniárias a dirigentes, mantenedores e associados

Em diferentes artigos deste anteprojeto, a adoção desta disposição e nomenclatura dará mais clareza e preservará direitos e interesses não apenas de cineclubes, mas de outras associações sem fins lucrativos que têm surgido no universo da cultura audiovisual, como os pontos de cultura, além de cinematecas.

Reconhecimento e Representação

O enunciado da composição do Conselho Superior do Cinema, tal como definido no artigo 4 da Medida Provisória 2.228, de 06/09/01 nos parece vago e inadequado. O atual anteprojeto revoga essa disposição, mas relega a questão (Artigo 9°, § Primeiro) ao "regulamento", sem maiores precisões.

Cumpre-nos, então, apontar como insatisfatória a definição do Inciso II do Artigo 4° da referida Medida Provisória, que descreve os representantes do meio cinematográfico e audiovisual no Conselho Superior do Cinema apenas como pessoas "que gozem de elevado conceito no seu campo de especialidade" – uma formulação discricionária que comporta um forte elemento de subjetividade.

Parece-nos, pelo contrário, que seria desejável estabelecer uma participação mais definida e proporcional – representativa de diferentes setores da atividade – apontada claramente no texto legal. De fato, tal mecanismo se aplicava, ainda que de maneira imperfeita, no Conselho Nacional de Cinema, por exemplo, conforme o Decreto 93.881, de 23/12/1986.

Assim, os cineclubes brasileiros crêem ser fundamental sua participação no futuro Conselho Superior do Cinema e do Audiovisual, claramente prescrita no texto da Lei, sem prejuízo de outros segmentos da área cultural audiovisual – em especial o do curta-metragem, representado pela Associação Brasileira de Documentaristas e Curta-metragistas – ou dos setores profissionais e comerciais.

Da mesma forma, o Artigo 84° do presente anteprojeto remete ao regulamento a composição e funcionamento do Conselho Gestor do Fundo Nacional para o Desenvolvimento do Cinema e do Audiovisual Brasileiros.

Cabe com igual ou maior ênfase apontar a necessidade imprescindível de representação e participação dos cineclubes brasileiros, através de sua entidade representativa, nesse Conselho.

Os cineclubes e entidades congêneres não apenas constituem inequivocamente uma parcela substancial – senão numericamente majoritária – dos projetos e atividades a serem apoiados e estimulados por esse Conselho Gestor, como também representam a principal iniciativa no campo da exibição não comercial e de caráter comunitário. Esta área de atuação, atribuição precípua dos cineclubes, cuja importância só tem sido reconhecida muito recentemente, é a única que pode estender e enraizar a cultura cinematográfica e audiovisual nos mais de 90% dos municípios brasileiros que não dispõem de salas de cinema. Ela depende intrinsecamente do amparo estatal e deverá ser uma das grandes contribuições que o Funcinav dará para a sociedade brasileira.

É essencial que os cineclubes, através de sua entidade representativa, tenham assento no Conselho Gestor do Fundo Nacional para o Desenvolvimento do Cinema e do Audiovisual Brasileiros.

Sistematizando e definindo mais precisamente direitos e estímulos

As questões mais fundamentais e urgentes que importam aos cineclubes brasileiros são o reconhecimento e regulamentação da sua existência e atividade e a sua legítima participação nos organismos responsáveis pela elaboração, regulamentação e gestão das atividades cinematográficas e audiovisuais, principalmente as de caráter cultural.

Assim, com base nas sugestões e reivindicações expressas acima, vimos apontar a necessidade de esclarecimento e retificação de alguns artigos deste anteprojeto.

1. Informações e Monitoramento

Todo o Título III do Livro III, sobre o Sistema de Informações e Monitoramento das Atividades Cinematográficas e Audiovisuais é concebido dentro da evidente necessidade de informação, gerenciamento e controle da atividade econômica ligada ao audiovisual. Essa necessidade, quando aplicada ao setor exclusivamente cultural pode, no entanto, assumir um caráter arbitrário, desnecessário ou, no limite, até perigoso para a salvaguarda dos direitos mais gerais de livre expressão e organização.

Entendem, portanto, os cineclubes brasileiros, que a regulamentação desse Sistema de Informação deve estar atenta ao caráter especial das atividades culturais, experimentais e sem finalidades lucrativas. E, como parte interessada, reiteram a necessidade de sua representação no CSAV.

Antes mesmo da regulamentação, contudo, alguns artigos referentes ao Sistema de Informação merecem aperfeiçoamento:

Artigo 48° – Trata da instalação de sistema de controle de receitas de bilheteria em salas de exibição pública.Deve constar isenção das salas pertencentes, administradas ou utilizadas, a qualquer título, por entidades sem fins lucrativos.

Artigo 49° – Trata da obrigatoriedade de fornecimento de "relatórios sobre a oferta de obras cinematográficas e de outros conteúdos audiovisuais". Devem ser isentas dessa obrigação as entidades sem fins lucrativos, à exceção das atividades que recebam financiamento com recursos públicos.

Da mesma forma, ao estabelecer a cessão de direitos de obras produzidas com recursos públicos, o texto deve incluir as entidades culturais sem fins lucrativos, e particularmente os cineclubes e cinematecas, entre os beneficiados. Assim, sugerimos um acréscimo à redação do Artigo 57°:

Artigo 57° – Decorridos oito anos de sua primeira exibição comercial, os detentores dos direitos autorais sobre as obras cinematográficas e videofonográficas produzidas com recursos públicos ou incentivos fiscais devem ceder os direitos de exibição para canais educativos mantidos com recursos públicos nos serviços de radiodifusão de sons e imagens e nos canais referidos nas alíneas "b" a "g" do inciso I do Artigo 23° da Lei nº 8.977, de 1995, em estabelecimentos públicos de ensino, cineclubes e cinematecas, na forma definida em regulamento.

2. Condecine

Com relação à Condecine, seguindo o que já havia sido previsto na Lei 6.281, de 9/12/75 (a "Lei da Embrafilme"), assim como o Decreto-Lei 1.900, de 21/12/1981, evidentemente os cineclubes devem estar isentos dessa contribuição. Dessa forma, a redação do artigo pertinente, deve incluir:

Artigo 74° – São isentos da Condecine, na forma do regulamento:

    I – a obra cinematográfica e videográfica destinada à exibição exclusiva em festivais, mostras, cineclubes e cinematecas

3. Funcinav, Prodecine, Prodav e incentivos fiscais

A redação dos artigos referentes ao Funcinav, aos Programas de Apoio ao Desenvolvimento do Cinema e do Audiovisual e aos incentivos fiscais é frequëntemente dúbia, dando margem a uma interpretação restritiva, em que os recursos oriundos dessas fontes seriam aplicados única e exclusivamente em atividades de natureza econômica, de finalidade lucrativa.

O Artigo 83°, por exemplo, que institui o Funcinav, depois de elencar uma ampla gama de aspectos da atividade audiovisual a serem incentivados, conclui que esses objetivos serão perseguidos "de modo a ampliar a competitividade da economia cinematográfica e audiovisual nacional".

Sugerimos, portanto, algumas alterações pontuais que garantem mais efetivamente a destinação de uma parcela desses recursos para objetivos que eventualmente não tenham propósito econômico imediato, mas são de interesse fundamental para a nação:

Artigo 83° – Fica instituído fundo de natureza contábil, denominado Fundo Nacional para o Desenvolvimento do Cinema e do Audiovisual Brasileiros (Funcinav), com o objetivo de fomentar as atividades cinematográficas e audiovisuais brasileiras, incentivar a capacitação de recursos humanos e o aperfeiçoamento da infra-estrutura de serviços, de modo a ampliar a competitividade da economia cinematográfica e audiovisual nacional e promover a universalização do acesso às obras, conteúdos e atividades voltadas à obtenção de informação, educação, cultura e lazer pelo conjunto da população.

Artigo 94° – As prestadoras de serviços de radiodifusão de sons e imagens e outras prestadoras de serviços de telecomunicações exploradoras de atividades audiovisuais devem destinar à Ancinav três minutos diários, não contínuos, para a inserção de publicidade e peças promocionais de obras, eventos e outras atividades cinematográficas, na forma do regulamento. Artigo 99° ...

    § 4º Os projetos específicos da área audiovisual, cinematográfica de difusão, preservação, exibição, distribuição e infra-estrutura técnica apresentados por empresa brasileira com ou sem fins lucrativos, poderão ser credenciados pelo Ministério da Cultura para fruição dos incentivos fiscais de que trata o caput deste artigo.

4. Sanções Administrativas

Evidentemente, as sanções que possam ser aplicadas a associações e outras entidades sem fins lucrativos devem, em muitos casos, ter uma formulação diferente daquelas aplicadas às empresas e negócios tipicamente comerciais. Em alguns casos, a própria legislação impõe o tratamento diferenciado, por exemplo de dirigentes de entidades sem fins lucrativos (Lei 10.406, de 10/01/02); em outros, a aplicação de multas pesadas podem comprometer a própria existência da entidade que possa ter cometido uma infração sem dolo.

Assim, dois artigos nos parecem merecer uma ligeira retificação:

Artigo 120° – Nas infrações praticadas por pessoa jurídica de natureza comercial, também serão punidos com a sanção de multa seus administradores ou controladores, quando tiverem agido de má-fé.

Artigo 125° ...

    II – no caso de empresas comerciais, multa de vinte por cento, calculada sobre o valor total dos recursos.

Os cineclubes brasileiros vêem com muito otimismo as iniciativas que vêm sendo tomadas pelo Governo Federal no campo do cinema e do Audiovisual. Reconhecemos e louvamos o caráter democrático da consulta pública promovida pelo Governo e temos confiança de que nossas reivindicações, por justas e oportunas, merecerão atenta apreciação por parte do Ministério da Cultura, do Conselho Superior do Cinema e, posteriormente, pelo Congresso Nacional.

A todos enviamos nossas

Saudações Cineclubistas